A Matilde

Ela é bonita, tem um semblante austero mas um olhar carinhoso, é sóbria e sobriamente se veste, unhas arranjadas numas mãos onde se vê marcado o trabalho que não teme. A sua voz é grave, directa e assertiva. Quando ri, o som inunda o ambiente, quando canta deixa transparecer no olhar alegrias de menina que dançou e cantou muito. Matilde poderia ser a mulher do leme... Uma vida onde quarenta e poucos anos passaram sem muita leveza... batalhas atrás de batalhas, muitas delas sem que estivesse na linha da frente mas, ao fundo, onde as guerras faziam mais baixas. Seguiu atrás de metas e sonhos, lutou incansável contra amigos, família e seguiu, seguiu os sonhos que, aos poucos, se foram materializando.

As nossas vidas cruzaram-se há mais de quinze anos, odiámo-nos por tudo e por nada.

A figura austera e fria, a ausência de um sorriso...A marca indestrutível que deixava naquele que eu queria que fosse só meu mundo.

Matilde teve duas filhas, fez delas sozinha, duas crianças maravilhosas. Construiu a casa com que sonhava, construiu a vida com que sonhou.

Foram passando os anos, fomo-nos cruzando. Em silêncio questionámos o ódio que sentíamos, observámo-nos, ouvimo-nos. Respeitámo-nos.

Um dia, uma dor, um diagnóstico, uma operação, um desígnio injusto, uma aberração de uma simples célula entre milhões... depois a quimioterapia. Para mim, um turbilhão de momentos, imagens, sentimentos, lágrimas, medos. Afastada fui observando, estando lá quando achei que devia estar, e quando estava envergonhava-me da minha fraqueza.

Um dia, sozinhas, questionei-a:
- Preciso saber Matilde, tu és mesmo esta mulher de ferro, ou há alturas em que quebras, baixas os braços?
Matilde fez aquele sorriso lindo que tem, quando até os olhos parecem beijar-nos e respondeu encolhendo os ombros numa atitude humilde e carente que eu desconhecia nela:
- Às vezes!

Nesse momento quis tanto abraçá-la, gostei tanto dela...

Ainda não acabou a luta da Matilde, já lá vão seis meses... Nada parou, nem a casa, as meninas, as festas de aniversário, porque ela inundou-se de vida, como se esta lhe fugisse. Nunca ouvi uma queixa, nunca foi nem é, afirmo-o eu, vitima de nada. Nunca pediu nada. Matilde continua no leme da sua vida, com a sua voz grave, o seu olhar carinhoso.

Elevei a minha Amiga Matilde ao patamar mais alto da caixinha onde arrumo imagens de pessoas que me rodeiam.
Muitas vezes vejo um esforço quase desumano, uma fobia de alegrias, um correr quase obstinado. Matilde mostrou-me a dimensão de alguém que contrariou o rumo da sua vida e, sem olhar para trás, sem baixar os ombros, enaltece as pequenas maravilhas que a vida tem.
Matilde fez-me pensar no quão fácil é deixarmo-nos fluir em lágrimas e derrotas, atrair as atenções e as multidões mostrando a infelicidade e repisando no drama. Matilde mostrou-me a infinita capacidade que ela tem de oferecer a si própria os melhores momentos.

Bem hajas Matilde, por me teres deixado conhecer-te um bocadinho, por teres aceite a minha companhia no teu primeiro dia de quimioterapia. Obrigada por teres elevado a minha fasquia.

Hoje, se me apetecesse lamentar-me porque estou enjoada e me dói o corpo, não iria ser capaz.

Por ti, pelo que me mostraste, pelo que me ensinaste, gostava de dizer-te: - Conta sempre comigo!

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