Será que há verdades que simplesmente gravamos em nós, intocáveis. Porque é suposto serem verdades inalteráveis para sempre. Há um laço, indestrutível, ele é o Pai, eu sou a filha.
Ele mostrou-me o mundo, incutiu-me o seu espirito aventureiro. Ele, desligado de tudo, mostrou-me a luta por viver acima dos preconceitos, das regras, do normal. Ele mostrou-me a adrenalina do risco, do desconhecido. Ele deu-me liberdade, levou-me por rios, por mares, ele fez-se à praia apesar dos acenos dos pescadores tão conhecedores daquele mar. E o barco virou, e nós caímos ao mar. Quando regressámos era noite, e eu nadei com medo até à praia. Ele nunca seguiu o caminho fácil, levou-me por estradas de terra, guiado pelo seu instinto, tantas vezes nos perdemos. Ele quis sempre mais, lutava contra as regras, lutava contra a falta de garra. Ele mentia-me para me fazer duvidar, ele contava-me as histórias encantadas de cada canto que visitávamos.
O meu Pai!
O meu Pai exigiu tudo de mim, a escola, a educação, os valores morais, prendeu-me às nossas raízes. Repreendeu-me à mesa, repreendeu-me o Português.
Este quadro que agora pinto, está tão vivo na minha mente, cada momento, cada palavra... Mas ele não esteve lá sempre, ele esteve tanto tempo ausente. Mas quando voltava, preenchia cada falta, superava a saudade. Preenchia o meu mundo e tornava-o maravilhoso. O meu Pai elevou a fasquia dos meus sonhos, dos meus objectivos, alargou os meus horizontes, tanto.
E se quando o tempo passou, quando ele ficou mais velho, tudo mudou? Mudou de forma a já não reconhecer a pessoa que está à minha frente, já não é o herói do quadro que pintei.
E se eu não gostar do homem que ele é hoje? E se eu o condenar pelas atitudes diárias opostas às do meu herói? Ele desrespeita toda a gente, ele maltrata quem mais ama, ele não permite um diálogo, ele não ouve, só quer ouvir-se, quer obrigar-me a aceitar como certas as suas convicções, ele usa e abusa das pessoas, ele humilha os poucos mas verdadeiros amigos, venera gente que nada lhe dá, apenas porque são fracos, submissos e ele consegue manipula-los.
E se eu disser que não gosto do meu Pai? Já não o encontro, não o reconheço, o homem que vejo hoje raramente me faz recordar o meu Pai.
Às vezes sinto isto, tantas vezes. Automaticamente sinto uma culpa insuportável, ele é meu Pai! Mas também é homem, é gente. e eu não gosto do homem que ele é.
Às vezes, numa ou outra ocasião, apenas quando as circunstâncias da sua vida o permitem, apenas quando ele tem à sua volta aquilo que quer, apenas quando os que o rodeiam tomam a atitude que ele quer, eu percebo que o meu querido herói ainda vive, mas ele está demasiado condicionado nem sei por o quê. Está enterrado num sitio demasiado profundo, e quando sobe à superfície, onde fica visível aos meus olhos, eu sinto uma dor incomensurável, uma culpa...
Porque se o meu herói ainda ali está, porque é que eu não gosto do meu Pai?
Pode ser um tremendo egoísmo meu, ele cresceu, envelheceu e eu estarei talvez a exigir que ele recue uns 25 anos, e isso, eu sei, não é possível.
Tenho eu que aceitá-lo como é? Agarrada a lembranças de um homem que já não existe.
Digo que não gosto do meu Pai, mas amo tanto, tanto o meu herói. E sei que ele vive e viverá sempre comigo, ao meu lado, disposto a tudo para me ajudar, para me amparar, para me apoiar.
Será simplesmente o sentido que ele quis dar à sua vida que eu não suporto?
Escrevo isto, com uma lágrima e com a culpa de uma filha...
Amo-te tanto Pai, o que aconteceu contigo?
1 comentário:
De facto, há momentos que nunca esquecemos e que nos marcam profundamente. E, para além disso, julgo que existem laços dos quais dificilmente nos conseguimos soltar. É bom amar alguém, por mais defeitos que possa ter. Afinal, todos os temos...
Um beijinho e um especial obrigada pelo comentário que me fez sorrir.
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