Histórias



Sempre que subia a escadaria de pedra, Tita já adivinhava a algazarra que a esperava. As vozes eram sempre estridentes e alegres, os sorrisos inundavam o primeiro andar. Cheia de abraços e beijos, muitos beijos e apertões. Tita nem sabia por onde começar. Lá fora, as bicicletas com os pneus cheios de ar que o avô tinha preparado para ela na oficina do Manel Jesus. Lá fora estavam as férias, os amigos, as brincadeiras, o rio e a avenida.



Na cozinha havia sempre aquela lata redonda, amarela e azul com uma menina pintada, lá dentro estavam os bolinhos de amêndoa. Na dispensa estavam os rebuçados, e as costas doces ou com torresmos num alguidar azul cobertas com um pano branco. No quarto a cama grande com o terço e os santinhos, onde a avó a adormecia com histórias do menino Jesus. O calor que fazia sempre tornava tudo ainda mais especial. O pó da rua, o vento quente, a azáfama constante na cozinha, o silêncio escuro na hora da sesta obrigada.




(... Cheguei cansada da viagem, subi a escada de pedra e ouvi o silêncio e senti o cheiro de roupa guardada e de naftalina. Cheiro de casa fechada, sem forno, sem bolinhos, sem flores.

A culpa atormentou-me mas desvaneceu-se na aceitação do tempo, da idade. Mais tarde, à noite, num rasgo de lucidez, a avó disse-me: - Ai Tita, a vida devia ser mais longa...)



Sentada na varanda, Tita ansiava pela voz, pela música de outrora. Era tarde, estava cansada. Cansada principalmente das insistentes perguntas, sempre as mesmas, reveladoras da incontornável velhice. Ansiava pela algazarra, por uma chávena de chá com bolinhos de amêndoa. Desceu devagar da cadeira, sentou-se no chão envergonhada e olhou ligeiramente para cima, de encontro ao olhar daquela mulher linda. Sábia de vida, sábia de histórias, e perguntou:

- Avó, como era quando eras menina?

E assim ficou, sentada no chão, vergada perante a grandeza de uma vida. Ouviu em silêncio, palavras de dor, de luta. De amor e preserverança. De alegria. Histórias de fazer pão, histórias de guarda rios, de caminhos e andanças. Memórias claras de nomes e datas, numa mente velhinha cansada de velhice.
Tita conteve todas as lágrimas, de vez em quando fazia uma pergunta ou outra, tentava que aquela voz fluísse sem se perder no hoje.
Falaram de outros tempos, muito, muito antes do tempo em que Tita era a primeira a subir a escadaria de pedra.
No fim, a imensa tristeza de não haver mais tempo, porque a vida da avó Maria deixa uma saudade marcada no peito de quem a conhece.
No fim apenas gratidão. E paz!

3 comentários:

Alda Couto disse...

Que texto tão bonito! E que sorte ter a vivência para o fazer :)
Parabéns.

PB disse...

Um bom texto e com fotos a ajudar. Não conhecia o blog...

Valquíria Vasconcelos disse...

Tenho tantas saudades de fazer isso... aproveita sempre que puderes!

jokas